Dezuó: breviário das águas é uma obra cênica de Rudinei Borges dos Santos, escrita entre 2015 e 2016, com dramaturgia finalista do Prêmio Shell de Teatro (SP). A peça versa sobre a resistência de ribeirinhos frente aos megaprojetos de construção de usinas hidrelétricas nos rios da Amazônia. Encenada pelo Núcleo Macabéa, com impactante atuação do…Leia mais Dezuó: breviário das águas
Como os pés de um menino correndo das chamas
Como os pés dum menino correndo das chamas são muitos os que morrem na goela do mundo – mar de pedras, mar enxuto e seco. O teu corpo cinza reluz no calor da espera. São asas tortas. São asas mortas no voo entre coivaras. Eis, agora, a sombra das tuas mãos acarinhando a penugem, pelo…Leia mais Como os pés de um menino correndo das chamas
Cinzas sopradas por ventos do deserto
Guardar cinzas sopradas por ventos do deserto. O cais estremecido na tempestade. O pássaro à parte do silêncio. A máquina que atravessa as vísceras. Ar rarefeito. Asas que se abrem abruptamente. Há apenas uma parede fina e frágil que nos separa. Talvez amanhã abram a janela. A porta. Guardar a porta aberta. A mesa posta.…Leia mais Cinzas sopradas por ventos do deserto
Carta ao poeta Federico García Lorca
O coração insone dorme comigo no ventre dos pássaros. Guardo o limo e o mármore nas asas de um anjo. Lanças no teu corpo contrito. O atrito das mãos sobre o semblante cabisbaixo. A palma dos pés arrastando a aridez da terra acre. A sede do útero incendiado. A febre dos ombros puídos. O teu…Leia mais Carta ao poeta Federico García Lorca
Réstias do tempo
Para Elza Lima. Guardar a mantilha em cambraia. O algodão cru. Tecidos feitos com linho e viscose. Tencel. A lã fria. A laise. A seda. A sarja acetinada. O Brim. Réstias do tempo. O voal puído. Guardar farrapos duma vida inteira – pupila no breu. Toda ventura e combate nas mãos era coisa pouca. Miúda…Leia mais Réstias do tempo
a linha torta onde Deus nunca escreveu uma só palavra
vamos por aí no galope dum cavalo selvagem e triste com o asfalto na soleira dos sapatos a palma dos pés feito fuligem o coágulo das horas na palma das mãos a voz do rosto moendo os escombros da cidade adentro o corpo atiçado um cão sem dono vamos por aí consertando as coisas como…Leia mais a linha torta onde Deus nunca escreveu uma só palavra
Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores
Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores, obra teatral de Rudinei Borges dos Santos. Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde…Leia mais Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores
Revolver
Revolver, obra teatral de Rudinei Borges dos Santos. Prólogo A SEDE DE DENTRO Vento no deserto. Só estirão. Kizúa, o andejo, está sentado com uma arca. Sozinho, como à espera de alguém, olha as distâncias. Não se contenta que esteja só. Não muito longe, avista-se na aridez da paisagem uma árvore grande, baobá. Kizúa cantarola.…Leia mais Revolver
Transamazônica
Transamazônica é uma peça interrompida. Impedido de viajar para a BR-230, no interior do Pará, norte do Brasil, por notícias da violência velada e explícita que lá se estabelecia em 2018 – até com listas de mortes – relutei em abandonar a ideia de escrever uma peça de teatro sobre a missionária Doroth Mae Stang…Leia mais Transamazônica
Arrimo
Arrimo [Testemunho teatral de Rudinei Borges dos Santos, escrito em 2019 e encenado pelo Núcleo Macabéa na cidade de São Paulo em 2020.] [Dev. De arrimar] S.m. 1. Encosto, apoio, escora: As pilastras servem de arrimo à laje; Já não dá dois passos sem servir-se de um arrimo. 2. Fig. Amparo, proteção, auxílio: Quando lhe…Leia mais Arrimo
Medea Mina Jeje
Medea Mina Jeje [poema dramático de Rudinei Borges dos Santos, publicado em 2018 no livro Dramaturgia Negra da Fundação Nacional de Artes.] _______ Éramos um só olhar nos papagaios empinados ao sopro fresco do entardecer [Olhando no espelho. Abdias do Nascimento] _______ Chão de folhas. Ao longe, avista-se um galho suspenso e seco de árvore,…Leia mais Medea Mina Jeje
Ser tão sem fim
Ser tão sem fim [Texto teatral de Rudinei Borges dos Santos] _______ Uma mulher de véu, a narradora, caminha em passos lentos. Veste indumentárias da grande cavalgada[1] do Arraial de Via Crúcis. Leva consigo um estandarte com imagem da Virgem Maria. A princípio, avista-se um fio só de luz que marca seus pés descalços. Ao longo…Leia mais Ser tão sem fim
Kaatinga
Kaatinga [Texto teatral de Rudinei Borges dos Santos] _______ O vaqueiro, quando parte para outro mundo, Deus perdoa os pecados. [Vicente Jacó] Caatinga [do tupi: ka'a [mata] + tinga [branca] = mata branca] _______ O narrador é um velho vaqueiro de Carapebas, hoje Afonso Bezerra, pequeno município do Rio Grande do Norte, localizado no nordeste do Brasil. O vaqueiro nordestino…Leia mais Kaatinga
Breviário do Menino Pássaro
Sinto ter vivido tanto, mas é como se tivesse nascido hoje; como se, em mim, hoje bastasse como evento. E o agora, sinto, se instaurasse no meu corpo, no meu aparecimento. E toda hora fosse este tremeluzir de deixar o útero como quem sai de casa disposto ao voo. Estou pronto mais uma vez, mais…Leia mais Breviário do Menino Pássaro
Sim
Sim Acordei às cinco horas da manhã para escrever um poema Mergulhar no mistério frio da madrugada há tempos Acordei? Não sei. Deve ser um sonho. Algo como um filme sonâmbulo Algo como um filme de super-herói – como aqueles que víamos no Cine Marabá Algo como a tarde e raios de sol nas colinas…Leia mais Sim
Amor
Mania feia dizer eu te amo. Vício ignóbil de linguagem. Amor é coisa sagrada. Não se pode invocar em vão. É como o nome de Deus. Não adianta chamar toda hora. Amor é surdo. Mistério que ninguém consegue expressar em palavras. Prosopopeias. Metáforas. Arrojos. Acrobacias. Subterfúgios. Devaneios. Solilóquios. Sussurros. Amor é bicho difícil de domesticar.…Leia mais Amor
Mar de dentro
Para Araquém Alcântara Almargem e almagre só Só almuinha Alfôjar só Só semblante da mãe Defronte da ribanceira só Só da cacimba vis-à-vis Do cais no entremeio só Só do afago que é dengo Arroio-danado na rede só Só banzeiro de aljorce Raios duma cantiga ao longe só Só na Vicinal de Santa Rosa Procissão…Leia mais Mar de dentro
Dinossauros carnívoros
Em algum lugar do fim do mundo um poeta mostra as vísceras aos ratos. Aos transeuntes. Espanta cães famintos. Baratas. Dinossauros carnívoros. Escreve versos molhados de sangue. E os dedica emocionado aos pistoleiros. Aos canalhas. Aos assassinos de velhinhas. Em algum lugar um poeta arremessa rimas. Desordena métricas. Destrói metáforas. Consome terno o seu cigarro.…Leia mais Dinossauros carnívoros
Anel de Saturno e outros poemas de Rudinei Borges
Rudinei Borges é um poeta nômade, insaciável dos caminhos. Insaciável, sobretudo, da liberdade do ver e do visto. Nesta procura, cada poema nasce em endereço diferente, um poeta diferente, embora, cada um, sem distinção, tenha a mesma marca da vivência de deslocamento, distanciamento, perda. Daí as insistentes tentativas de retorno, pela poesia, ao mundo amazônico da infância,…Leia mais Anel de Saturno e outros poemas de Rudinei Borges
Carta a Agostinho Neto
Anotado em um livro de poemas de Agostinho Neto, poeta angolano Aeroporto de Luanda, Angola. 6 de agosto 2017 Leio agora, leio em regresso ao Brasil de sempre. Leio já com saudades de Angola, com saudades de Benguela, para onde fui ao sul e adentrei o mar, banzeiros da Praia Morena, a Baía do Cuio,…Leia mais Carta a Agostinho Neto
5 poemas de (quase) amor
AMOR Mania feia dizer eu te amo. Vício ignóbil de linguagem. Amor é coisa sagrada. Não se pode invocar em vão. É como o nome de Deus. Não adianta chamar toda hora. Amor é surdo. Mistério que ninguém consegue expressar em palavras. Prosopopeias. Metáforas. Arrojos. Acrobacias. Subterfúgios. Devaneios. Solilóquios. Sussurros. Amor é bicho difícil de…Leia mais 5 poemas de (quase) amor
5 poemas eróticos
VOZES E ROCHEDOS nunca senti a fome dos homens a sede dos homens só a febre estanque dum cão solto pela cidade um rapaz de dezenove anos olhos de fagulha armando arapucas sob passarelas a voz de Deus miúda no infinito um pássaro sem asas armado na fiação das esquinas a dor amargosa das luzes…Leia mais 5 poemas eróticos
A poesia é o modo mais daninho de viver
Trapiches, âncoras, barcos, cacimbas, estirões, azinhagas, veredas e vicinais acocoram no olhar afoito que me alimenta. Meu coração é faminto. Vou ao cais com os meus meninos, morenos de luz, todas as tardes. E lá, dentro da vertigem, em fagulhas, reencontro, tecida em tacapes, a voz de Deus e das andorinhas. Meus meninos miudinhos no…Leia mais A poesia é o modo mais daninho de viver
at(irado)
quis dizer que aqui vejo disparar nos meus olhos sobrados da Rua São Sabino casas de velhos portugueses que chegaram aqui – tardiamente – na década de 1970 vejo disparar asfalto remendado retalho de seda motocicletas e luzes (em pedaços) de automóveis meninos na flor da idade cobertos com capuz e moletom em pleno calor…Leia mais at(irado)
O menino na cacimba
que-se-diga que-se-diga caiu no mundaréu tardinha dessas no arredor da casa do beco só barro no arredor do beco toda espécie de barro branco vermelho amarelo a mãe ia com uma bacia de alumínio no ombro na cabeça nossa mãe punha uma rudia de pano na cabeça e a bacia na cabeça a cacimba da…Leia mais O menino na cacimba
Meninos e vaga-lumes
alumiar-alumiar feito vaga-lume só fagulha-fogueira meninos sentados em tamboretes boca-da-noite fogão a lenha e remos encostados na parede de barro e sede o vô nunca dizia vaga-lume o vô dizia pirilampo porque há muita diferença entre vaga-lume e pirilampo há muita diferença entre o mundo de lá e o mundo de cá menino do Tapacurá…Leia mais Meninos e vaga-lumes
Antônio
Andemos rápido, Antônio. Andemos em vão, em círculo – antes, então, que os atiradores arremessem granadas em forma de pão no precipício. Andemos de costas, Antônio. No corpo íngreme das ruas, ventre da procissão assustada. Andemos raivosos. Cálidos, Antônio – andemos. Na calada da noite, voz atirada dos sonos, andemos defronte da multidão. Dentro das…Leia mais Antônio
Arrozal
quando sussurrarem ao pé do ouvido: morreu a tua mãe – que farei? eu que sou Borges menos que Borges que farei quando os olhos embaçarem? quando andorinhas trouxerem a última carta o último beijo o último Deus o abençoe, meu filho – que farei? quando o sol partir para sítios ignotos quando não restar…Leia mais Arrozal
A sala
Nesta sala pobre/ velha – mais pobre que velha – a gente do tempo antigo partiu histórias: algumas felizes, outras tristes – umas nem felizes nem tristes. Nesta sala passaram gerações. Pairava ali – protagonista – um sofá remendado milhões de vezes. Um sofá onde sentaram meu avô e minha avó, meus tios e minhas…Leia mais A sala
O passado anunciado
Não desconfio do meu passado. Irresoluto. Herói da terra. Herói do mar. Eles não sabem que a fome das tardes alimentou o meu útero e o meu menino vive em mim. Aguerrido. Os casarões que povoam a minha memória foram registrados num cartório da Rua Getúlio Vargas no dia 18 de janeiro de 1983. Não…Leia mais O passado anunciado