TRANSAMAZÔNICA

Estou com desejos de desastres…
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na canjerana dos batentes…
Tenho desejo de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

(Mário de Andrade, O poeta come amendoim)

PRÓLOGO
DESTROÇOS

Transamazônica. Km 3.000. Itaituba. Cena externa. Fim de tarde. Cerca de madeira. Vê-se a fotografia de uma mulher com um menino. O narrador avista destroços de si e do tempo.

NARRADOR Guardo cruzes tantas na estrada. Rastros dos que partiram. Gente tanta que veio de longe. Semblantes suados de camponeses. Rasgos da Transamazônica em meio à floresta. Gente derruída. Árvore derruída. Guardo o rosto de minha mãe. Menina ainda a minha mãe, num caminhão pela estrada. Coisas tantas trazidas de Xinguara. Coisas tantas trazidas de Ananás. A vó. O vô. Os meninos. Apinhado de gente, uma família: destroços. Corpo entregue à poeira. Corpo vivo na estrada, entre curvas. Foi ali que o rosto de minha mãe se perdeu, ou antes. Não sei. Talvez minha mãe nunca tenha tido um rosto. Talvez seja invenção minha o rosto de minha mãe. Talvez eu mesmo não tenha um rosto. Só cruzes tantas na estrada. Rastros dos que partiram. O rosto de minha mãe, sol a pino. O rosto de minha mãe em meio à mata. As mãos de minha mãe derrubam árvores da floresta. As mãos de minha mãe põem fogo na floresta: coivara. A terra preta da floresta, adubada agora. Terra arada. O plantio. A lavoura num cemitério de árvores. A colheita. Fagulhas. Milho assado. Conversa tarde da noite. Semblantes suados de camponeses. Cozem. Adentram. “Mata aquele pau. Arranca aquele cipó.” Descampado. Levanta-se uma casa aqui, outra acolá. Clareira. Casa num cemitério de árvores. Caminhões abarrotados de camponeses num cemitério de árvores. Camponeses mortos-vivos. Acende o candeeiro. Tange nas mãos o fumo. Vem a fumaceira. Toma um gole de aguardente. Amola o teu facão, a tua foice. Guarda do sol o teu rosto. Bebe a tua água fria. Lava o teu rosto. Arriba a tua motosserra. Zonzeira. Só barulho de motosserra no meio da mata. Um homem sozinho no meio da mata. Um homem sozinho com uma motosserra no meio da mata. A lâmina da motosserra atinge a pele da árvore. A lâmina da motosserra atinge as artérias da árvore. Sangue por todo lado. A árvore cai silenciosa. Arranca-se a copa e a casca da árvore. Esgarça-se o tronco numa serraria. Tábua vermelha. Tua cama. Tua cômoda. Tua mesa. Tua cadeira. Carpintaria. O espectro das coisas espalhadas numa escrivaninha em novembro de 1986. Foi ali que o rosto de minha mãe se perdeu, ou antes. Não sei. Talvez minha mãe nunca tenha tido um rosto. Talvez seja invenção minha o rosto de minha mãe. Talvez eu mesmo não tenha um rosto. Só cruzes tantas na estrada. Rastros dos que partiram. Os olhos castanhos de minha mãe. Lembro-me dos olhos castanhos de minha mãe. A cor de jambo da pele de minha mãe. A Transamazônica numa fotografia ao fundo. O lamaçal de barro vermelho no inverno. Chuva o tempo inteiro. A Voz do Brasil no rádio a pilha. (Sussurros.) Deus é um forasteiro. Lembro-me dos olhos marejados de minha mãe. Sinos na lonjura. Lembro-me do choro de minha mãe quando meu pai partiu. Lembro-me do choro de minha mãe quando eu mesmo parti.

BREVIÁRIO UM
REVÓLVER

Transamazônica. Km 2.700. Uruará. Cena externa. Noite escura. Um menino e um pistoleiro conversam num descampado. Avistam-se apenas estilhas do rosto do menino e do pistoleiro.

MENINO Sempre quis ter uma arma. Um trinta e oito. Um fuzil AR-15. Um M16. Sempre quis pôr na mão uma arma de verdade. Um troço doido pulsando no meio dos dedos. Já passou o tempo de ficar correndo por aí com armazinha de mentira, brincando de polícia e ladrão. Sempre quis ter uma arma. Uma nove milímetros. Uma doze. Um FAL. Um G3. Uma metralhadora .30. Uma .50.
PISTOLEIRO Tenho aqui se você quiser.
MENINO O quê?
PISTOLEIRO Uma arma.
MENINO De verdade?
PISTOLEIRO Um trinta e oito. Um revólver de verdade. Entende?
MENINO Entendo.
PISTOLEIRO Entende o quê?
MENINO Do revólver. Não é disso que você tá falando?
PISTOLEIRO Você não entende coisa nenhuma. Nunca pegou num revólver de verdade.
MENINO Já peguei. Você não sabe de nada. Já peguei um revólver de verdade.
PISTOLEIRO Você é só um diabo covarde que corre por aí achando que sabe das coisas.
MENINO Já peguei um revólver na mão. Esquentei os dedos. Pus a arma na boca, no céu da boca e atirei.
PISTOLEIRO E morreu?
MENINO Não. Foi só um sonho. (Pausa.) Onde tá a arma?
PISTOLEIRO Não sei. (Pausa.) Que arma?
MENINO O trinta e oito.
PISTOLEIRO Tá aqui.
MENINO Onde?
PISTOLEIRO Na minha mão.
MENINO Não tô vendo.
PISTOLEIRO Olhe bem.
MENINO Tô olhando.
PISTOLEIRO É só você levantar bem o corpo. Segurar o revólver na mão. Mirar bem o inimigo, o corpo do inimigo.
MENINO E depois?
PISTOLEIRO Depois você atira uma, duas ou três vezes. Atira até o inimigo cair, estrebuchar feito um cão sarnento.
MENINO E se ele continuar vivo?
PISTOLEIRO Você tem que ter certeza. Não pode deixar por aí um morto-vivo. Tem que matar mesmo. Se não matar, o inimigo cria coragem. Fica tomado de ódio e vem se vingar sem pena.
MENINO E se ainda assim ele continuar respirando?
PISTOLEIRO Você então atira de verdade, com gosto. Atira no miolo dele. Explode o miolo dele até que os olhos saltem no chão. Quando sentir o último suspiro você vai embora caminhando como se nada tivesse acontecido.
MENINO Você fica arrependido?
PISTOLEIRO De quê?
MENINO De matar.
PISTOLEIRO Não. Nem um pouco. Uns nascem pra morrer.
MENINO Como você sabe?
PISTOLEIRO Eu sei.
MENINO Como?
PISTOLEIRO É só olhar. Você olha bem e percebe: este aí tem que morrer agora.
MENINO Você faz o quê?
PISTOLEIRO Mato. E pronto.
MENINO Não entendo.
PISTOLEIRO O quê?
MENINO Por que você sai por aí e mata as pessoas?
PISTOLEIRO Por gosto. Um troço louco dentro do corpo.
MENINO E se pegarem você?
PISTOLEIRO Já disse: não pegam. Você sai de cena por uns tempos, vai pra bem longe. Some, sabe? Depois aparece. Ninguém vai dedurar. O pessoal já sabe que se dedurar o pau vai comer.
MENINO Você é meio doidão.
PISTOLEIRO Sou não.
MENINO Mas parece.
PISTOLEIRO Onde está seu pai?
MENINO Não sei. Ele morreu — eu acho. Minha mãe disse que ele morreu num tiroteio aqui embaixo, perto do rio. Disse que o corpo caiu dentro do rio.
PISTOLEIRO Eu conheço você.
MENINO Não conhece não. Vi você hoje pela primeira vez.
PISTOLEIRO Mas eu conheço você.
MENINO De onde você me conhece?
PISTOLEIRO Faz muito tempo. Só isso. Faz muito tempo.
MENINO Onde tá a arma?
PISTOLEIRO Não sei. (Pausa.) Que arma?
MENINO O trinta e oito.
PISTOLEIRO Tá aqui.
MENINO Onde?
PISTOLEIRO Na minha mão.
MENINO Não tô vendo.
PISTOLEIRO Olhe bem.
MENINO Tô olhando.
PISTOLEIRO Pra que você quer um revólver?
MENINO Pra matar você.
PISTOLEIRO Por quê?
MENINO Porque eu vi. Olhei pra você e vi. Você nasceu pra morrer.
PISTOLEIRO Então, toma a arma.
MENINO Onde?
PISTOLEIRO Na minha mão.
MENINO (Segura a arma.) Um revólver. Um trinta e oito de verdade.
PISTOLEIRO Espere.
MENINO Não posso.
PISTOLEIRO Por quê?
MENINO Um trinta e oito. Um troço doido pulsando no meio dos dedos. Paro. Miro. Atiro. Logo você estará morto.
PISTOLEIRO Espere.
MENINO Por quê?

Pausa.

PISTOLEIRO (Sussurra.) Sou seu pai.

Tiros ao longe.

BREVIÁRIO DOIS
AMPARO

Transamazônica. Km 2.190. Novo Repartimento. Cena externa. Sol do meio-dia. Um colono defende a benzedeira do homem da lei, que tenta prendê-la à força.

COLONO O que dizer o senhor não sabe? Quantos filhos a dona tem? Quantas bocas ela tem pra dá o de comer? Quantos pratos sobre a mesa? Quantos metros de tecido ela precisa pra vestir tanta gente? O senhor o que faz? A dona reza o rosário toda noite. Defuma a casa. Joga água benta na porta. Faz promessa pra São Benedito. Agora, o senhor vem com essa conversa que a dona não crê. Não crê em quem? No senhor ela não credita mesmo não. Nem nos olhos encardidos que o senhor tem. Nem no rosto liso e no terno acinzentado. Ela não usa óculos porque não quer. A vista dela foi entregue pra Santa Luzia. A fé dela é em Nossa Senhora de Nazaré. A dona sabe ladainha de cor. Sabe o nome e o sobrenome da gente. É chamada de mãezinha por toda a gente da região. E o senhor vem com esse monte de papel. Essas letras miúdas. Essas palavras difíceis. Essas desculpas esfarrapadas. Antes de prender a dona vai prender os meus meninos e a mim também. O senhor leve a minha lavoura. A minha casa. Mas essa dona o senhor não leva não. De jeito nenhum. Injustiça é coisa do demônio. O senhor não sabe? Pode chamar juiz, delegado, prefeito, presidente. Pode invocar Dom Sebastião. A dona fica. Pra curar nossas feridas. Pra ensinar que chá serve pra esta e praquela doença. Pra cuidar do mato e das ervas santas. A dona fica. Pros nossos filhos nascerem com os cinco dedos na mão e chorarem depois do parto. A dona é parteira velha. Benzedeira. Mulher de saber que ninguém furta. Nem o senhor que é doutor. Nem o senhor que é patrão. O senhor fique avisado. Não ande torto. Segure a língua. A dona não sai daqui não.

BREVIÁRIO TRÊS
MUCURA

Transamazônica. Km 2.600. Medicilândia. Cena interna. Sol da manhãzinha. Janelas abertas. Colona de rosto enrugado explica por que leva uma espingarda consigo. Pequenos raios de sol cobrem o rosto enrugado da camponesa. Ela franze os olhos.

COLONA A vida é cachaça braba, rasga até as entranhas. O senhor chora quando bebe? Eu choro feito céu desabado na tempestade. Ouço uma ladainha abatida numa procissão sem fim. A procissão segue por encruzadas tantas, de capelinha em capelinha, e vai juntando gente de toda parte. Um dia chorei tanto que vi a Virgemaria na procissão. De pés descalços, a Virge caminhava com o Jesus Cristinho no colo. Pobrezinha, nem sabia que o menino ia morrer na cruz. Que acometimento mais duro um filho morrer na cruz. O senhor sabe quantos meninos morrem por aí com bala na costela ou com fome? É a mesma cruz posta no calvário na Sexta-Feira da Paixão. É a mesma dor, hômi de Deus.

O que devo o senhor averigue. Este dente de ouro é lembrança do meu menino mais velho, que foi garimpar na Serra Pelada. Este rosário eu não largo — foi presente de minha avó. Estes sapatinhos de crochê são do menino caçula. Olhe. Tão pequeninos. Os pés vão crescer — creio. Que não cresça a raiva dentro dos caminhos do menino caçula. Estes barquinhos de miriti vieram de Belém. Este perfume de alfazema me faz lembrar minha mãe. Estes quadros desbotados na parede são do meu pai, metido a artista. Vendeu muitas pinturas em feiras, festejos de santo. Esta imagem de Santa Luzia de Siracusa, aquela de que arrancaram os olhos, trouxe de tempos distantes. Outros guardados tenho. Não ofereço a ninguém.

Esta espingarda eu guardo na cumeeira, mas carrego comigo se for o caso — foi o Zé que deixou. Tenho que caçar, senão morro de fome. O que o senhor queria duma mulher com cinco meninos? Que alimentasse as crias só com farinha de puba, sem um quarto de carne e banha de caititu? Meus meninos não comem sem carne de caça e banha de caititu. A gente planta macaxeira, mandioca, inhame, cará — tudo quanto é raiz. Nem sempre a terra ajuda. Aqui chove quase o ano todo. A água derruba tudo quanto é plantio. Se no sertão rezávamos para chover, aqui rezamos que a chuva tão cedo acabe. Por vezes, nem temos o alimento. Não cegue a vista: uma mulher sozinha alimenta cinco bocas. O senhor tem filhos? Já ouviu um menino lhe pedir o de comer e não restar, em casa, nem uma cumbuca de arroz? Levo a espingarda e sigo, em meio à mata, sem pena. Atiro. Tenho caçado mucuras só. Outros bichos não aparecem. Caço só o que preciso. Nem um tanto mais. Nem um tanto menos. Já ouvi duns, por aí, que levaram pêa dos encantados, na mata, por caçarem em demasia, na ganância. Até a Matinta Perera avista o injustiçamento. Dá-lhe surra na certa. É de carecimento muita reza para curar pêa de encantado. Mas, como disse, tenho caçado mucuras só. Por isso carrego comigo essa espingarda. E uma faca. Amolo faca na pedra. Deixo a lâmina afiada. À mostra, desnuda, a lâmina reluz quando atassalho a barriga da mucura. Separo as vísceras com as mãos. Arranco a cabeça. Livro-me dos olhos arregalados e da língua sedenta. Arranco as unhas e o rabo. Escaldo n’água fervente o pelo cinza bem escuro. Banho o sangue da carne. Posto ao sol, ponho o que restou da mucura para assar sobre brasas de carvão. Numa cumbuca, sirvo com farinha de puba a carne assada. Os meninos esfomeados abocanham o gambá mirrado. Emudecidos agradecem quando estão saciados. De fome meus meninos não morreram.

O senhor sabe como Deus criou o mundo? (Pausa. Olha ao longe.) Deus não criou o mundo. O mundo se criou sozinho. Antes do começo não havia nada — só silêncio. A grande explosão foi o barulho estrondoso que rompeu o silêncio. O universo é filho do barulho. O primeiro animal que surgiu no mundo foi a mucura. A natureza criou a mucura para que as mães alimentassem os filhos famintos. Os seres humanos foram expulsos do paraíso, sabe-se lá por quem, quando mataram a primeira mucura.

Cantarola.

Deve ter sido tão triste a morte do Cristo. Eu queria ser um mosquitinho para levar água até a boca do Cristo para que o Cristo não morresse com sede. Não me sai da cabeça que o Cristo morreu com sede. Deve ser tão triste morrer com sede.

BREVIÁRIO QUATRO
IRAXERU

Transamazônica. Km 3.390. Jacareacanga. Cena externa. Meia-noite. Lua minguante. Iraxeru é o espírito de uma menina do povo indígena mundurucu. Ela tem treze anos. Iraxeru volta ao local onde era a aldeia do seu povo. A aldeia não existe mais. Só existe a estrada sobre as ruínas de sua gente. Iraxeru olha firme quem está defronte.

IRAXERU Iraxeru. Meu nome. Iraxeru. Me batizaram com o nome Maria. Mas o meu nome é Iraxeru. Dos mundurucus. Era na beira do Tapajós. Era aqui. A gente vivia aqui fazia tempo. A gente tinha casa aqui. Casa de cipó e palha seca. Estaca de madeira. Árvore forte. Terra batida. Goteira quando vinha chuva. Trovoada a gente ouvia quando vinha a chuva. Dormia na rede. Era. A gente dormia na rede. Dormia e sonhava com a chuva. Trovoada. Era barulho. Nem era trovoada, às vezes. Era só barulho de castanheira. Ouriço de castanha caía. Estrondo. A gente acordava com a claridão do relâmpago. Aviso. Era. Relâmpago era aviso. Pai acordava e ia na chuva olhar o tempo. Acalmava o tempo. Não vinha mais o relâmpago. Estrondo. Um dia veio o estrondo. A gente acordou com o estrondo. Era trator o nome do estrondo. Bicho grande. Maior que onça. Maior que equiçá, oca. Quase tamanho da castanheira. Trator comia a terra. Arrancava árvore forte. Estaca de madeira. Trator arrancava equiçá, oca. Casa de cipó e palha seca. Trator levou tudo. Aldeia toda. Pai acordou e foi na chuva olhar o tempo quando trator levava tudo. Pai pegou facão. Pai tinha facão. Pai subiu no trator. Pai meteu facão na cara do homem que dirigia o trator. Sangue. Sangue do homem era vermelho como o sangue da gente. Igual sangue de macaco, que também é vermelho. Pai meteu um monte de facãozada no homem. Depois o pai fugiu pro mato. Homens que vieram com o homem do trator foram pro mato pra matar o pai. Mas o pai subiu no pé de sumaúma. Alto. O pai ficou lá no pé de sumaúma. Nunca que encontraram o pai. A gente tentou fugir também. Tentou ir pro mato. Subir noutros pés de sumaúma. Mas não deu tempo. Os homens que vieram com o homem do trator vieram pra cima da gente com facão e corrente de trator. Puseram fogo na casa com um troço de gasolina. Amarraram a mãe numa castanheira. Surraram a mãe com cipó e corda pra mãe dizer onde o pai se escondeu. Mãe ficou foi na carne viva de tanto apanhar dos homens que vieram com o homem do trator que o pai matou com uma facãozada na cara. Sangue. Sangue do homem era vermelho como o sangue da gente. Igual sangue de macaco que também é vermelho. Pai meteu um monte de facãozada no homem. Deve ter doído. Um homem veio pra cima de mim. Me arrastou até diante da mãe, que tava amarrada numa castanheira. Mãe que tava na carne viva. O homem cuspiu na minha cara. Mordeu a minha orelha. Chupou meu pescoço. Meu peito. Eu tentava fugir, mas o homem me apertava o braço. Mãe grunhia como bicho, mas mãe não tinha força de nada. Tive medo. E gemia. Eu gemia. E mãe olhava. Mãe, em carne viva, me olhava. (Pausa.) Doía. (Sussurra.) Doía muito. Homem dizia coisas. Ele não parava de dizer coisas. Eu não entendia o que homem dizia. Mãe chorava. Mãe, em carne viva, chorava. Homem cortou meu cabelo com faca amolada na pedra. Homem fez coisas comigo. Depois veio outro homem e fez mais coisas. E veio depois outro homem e fez mais coisas. E outro homem veio também e fez mais coisas comigo. Mãe chorava. Mãe, em carne viva, chorava. Eram muitos homens em cima de mim. Eu não tinha mais fôlego de tanto homem em cima de mim. Até que um deles me amarrou pelos pés com uma corda. (Grita assombrada, como se avistasse alguém ao longe.) Iraxeru. Iraxeru. Iraxeru. Pra onde foram os meninos? (Grita assombrada, como se avistasse alguém ao longe.) Iraxeru. Iraxeru. Iraxeru. (Pausa. Cantarola. Espalha muitas pedras. Volta a narrar.) Um dos homens me amarrou pelos pés com uma corda. Depois amarrou corda no trator. E me arrastou pela estrada entre troncos de árvores. Eu sentia pedras e troncos de árvores rasgarem minha carne. Eu sentia tanta dor. Mas só lembrava do pai no alto da sumaúma. E lembrava da mãe, em pele viva, amarrada na castanheira. E queria pedir pro pai descer de lá e tirar mãe da castanheira, pôr folhas na pele da mãe pra curar a pele da mãe, pra mãe viver longe, longe da estrada nova, longe do homem do trator. Mas eu não conseguia fazer nada disso. Só chorar. Eles acharam que eu já tinha morrido. Mas eu ainda respirava, desfalecida já. Eu respirava. (Sussurra.) Era um suspiro só. Então, um dos homens veio com uma peixeira e foi abrindo meu bucho aos poucos. Abriu meu bucho até a altura do pescoço. Homem do trator encheu o meu bucho com pedras e costurou com arame. Depois homem do trator jogou meu corpo no rio. E, desde então, nunca mais vi pai nem mãe. Nem casa de cipó e palha seca. Estaca de madeira. Nem árvore forte. Nem terra batida. (Sussurra.) Nunca mais.

BREVIÁRIO CINCO
PISTOLEIROS

Transamazônica. Km 2.375. Anapu. Cena externa. Madrugada. Dois pistoleiros conversam, entre cruzes, às margens da BR-230.

PISTOLEIRO 1 O Magal era doidão, entende?
PISTOLEIRO 2 Entendo não.
PISTOLEIRO 1 Ele punha o revólver na testa do boi e atirava. O sangue jorrava e o boi caía. Era certeiro.
PISTOLEIRO 2 Você viu o doido atirando?
PISTOLEIRO 1 Vi. O doido fazia isso na véspera do Natal. Matava o boi com um revólver pra fazer churrasco no Natal.
PISTOLEIRO 2 Era uma coisa louca, não era? O maluco com um revólver na mão. O maluco encara o olho do boi. O boi olha firme o maluco. O maluco atira. O boi cai no chão.
PISTOLEIRO 1 O sangue do boi era vermelho como o sangue da gente.
PISTOLEIRO 2 O quê?
PISTOLEIRO 1 Como sangue de macaco, que também é vermelho.
PISTOLEIRO 2 Você já comeu carne de macaco?
PISTOLEIRO 1 Não. Mas os índios comem.
PISTOLEIRO 2 Deve ser bom.
PISTOLEIRO 1 Não sei.
PISTOLEIRO 2 Já imaginou um maluco mirando o revólver? Um maluco encarando, olhando firme o teu olho? Já imaginou um maluco atirando no meio da tua testa?
PISTOLEIRO 1 Não. Mas vi num sonho. Eu caía no chão depois que o maluco atirava. Eu caía morto no chão. O meu espírito saía do corpo. Meu espírito via tudo de cima como se voasse. (Pausa.) Quando tive esse sonho acordei atormentado e fui à venda do Magal tomar uma dose de 51. (Pausa.) O Magal era doidão.
PISTOLEIRO 2 Ele andava com um rosário no pescoço. Tinha o corpo fechado.
PISTOLEIRO 1 Mas não acreditava em porcaria nenhuma.
PISTOLEIRO 2 Em Satanás. O Magal acreditava no capiroto.
PISTOLEIRO 1 E você acredita em quem?
PISTOLEIRO 2 (Com algum deboche.) Na pombajira. Naquela puta da pombajira. Entende?
PISTOLEIRO 1 Entendo não.
PISTOLEIRO 2 Você precisa entender uma coisa.
PISTOLEIRO 1 O quê?
PISTOLEIRO 2 Desconfie até da sua sombra. Dos canalhas. Desconfie dos canalhas.
PISTOLEIRO 1 Por quê?
PISTOLEIRO 2 Porque quem mata não confia. Não acredita.
PISTOLEIRO 1 Em nada?
PISTOLEIRO 2 Quem mata não acredita em nada.
PISTOLEIRO 1 Em Deus?
PISTOLEIRO 2 Em Deus tampouco.
PISTOLEIRO 1 Nos homens?
PISTOLEIRO 2 Menos ainda nos homens.
PISTOLEIRO 1 Sabe o Magal?
PISTOLEIRO 2 Sei. Que tem o Magal?
PISTOLEIRO 1 Ele tinha uma caminhonete. Ele saía adoidado com a caminhonete pela estrada. Levantava poeira.
PISTOLEIRO 2 E daí?
PISTOLEIRO 1 Ele punha uma fita cassete no som da caminhonete. Ele punha a música bem alta. E saía pela estrada com a música bem alta.
PISTOLEIRO 2 Você ia junto?
PISTOLEIRO 1 Eu ouvia aquelas músicas e olhava firme a estrada. Parecia que não tinha fim. Que a gente não ia chegar nunca no fim da estrada. Que aquela música ia tocar o tempo todo.
PISTOLEIRO 2 E o que aconteceu com o Magal no fim das contas?
PISTOLEIRO 1 Ele capotou a caminhonete um dia.
PISTOLEIRO 2 E morreu?
PISTOLEIRO 1 O corpo se esbagaçou na estrada.
PISTOLEIRO 2 Em tempos.
PISTOLEIRO 1 Mas eu não consigo esquecer.
PISTOLEIRO 2 O quê? O que você não consegue esquecer?
PISTOLEIRO 1 Da música.
PISTOLEIRO 2 Que música?
PISTOLEIRO 1 Da música que o Magal escutava no som da caminhonete.
PISTOLEIRO 2 E que diacho de música o doido do Magal escutava na caminhonete?
PISTOLEIRO 1 Aquela…
PISTOLEIRO 2 Qual?
PISTOLEIRO 1 Não sei.
PISTOLEIRO 2 Você comia o cu do Magal era?
PISTOLEIRO 1 Eu não.
PISTOLEIRO 2 Fica aí lembrando a música que o doidão tocava no som da caminhonete.
PISTOLEIRO 1 O Magal era doidão, entende?
PISTOLEIRO 2 Entendo não.
PISTOLEIRO 1 Ele punha o revólver na testa do boi e atirava. O sangue jorrava e o boi caía. Era certeiro.
PISTOLEIRO 2 Você viu o doido atirando?
PISTOLEIRO 1 Vi. O doido fazia isso na véspera do Natal. Matava o boi com um revólver pra fazer churrasco no Natal.
PISTOLEIRO 2 Era uma coisa louca, não era? O maluco com um revólver na mão. O maluco encara o olho do boi. O boi olha firme o maluco. O maluco atira. O sangue jorra. O boi cai no chão.
PISTOLEIRO 1 O sangue do boi era vermelho como sangue da gente.
PISTOLEIRO 2 O quê?
PISTOLEIRO 1 Como sangue de macaco, que também é vermelho.
PISTOLEIRO 2 Você já comeu carne de macaco?
PISTOLEIRO 1 Não. Mas os índios comem.
PISTOLEIRO 2 Deve ser bom.
PISTOLEIRO 1 Não sei. (Pausa.) Mas tinha uma coisa.
PISTOLEIRO 2 Que coisa?
PISTOLEIRO 1 Era um troço.
PISTOLEIRO 2 Que troço?
PISTOLEIRO 1 Dava até vontade de chorar.
PISTOLEIRO 2 Por quê? Por que dava até vontade de chorar?
PISTOLEIRO 1 A música.
PISTOLEIRO 2 Que música?
PISTOLEIRO 1 A música que o Magal escutava no som da caminhonete.
PISTOLEIRO 2 E que diacho de música o doido do Magal escutava na caminhonete?
PISTOLEIRO 1 Aquela…
PISTOLEIRO 2 Qual?
PISTOLEIRO 1 Não sei.
PISTOLEIRO 2 Você precisa entender uma coisa.
PISTOLEIRO 1 O quê?
PISTOLEIRO 2 Desconfie até da sua sombra. Dos canalhas. Desconfie dos canalhas.
PISTOLEIRO 1 Por quê?
PISTOLEIRO 2 Porque quem mata não confia. Não acredita.
PISTOLEIRO 1 Em nada?
PISTOLEIRO 2 Quem mata não acredita em nada.
PISTOLEIRO 1 Em Deus?
PISTOLEIRO 2 Em Deus tampouco.
PISTOLEIRO 1 Nos homens?
PISTOLEIRO 2 Menos ainda nos homens.
PISTOLEIRO 1 Sabe o Magal?
PISTOLEIRO 2 Sei. Que tem o Magal?
PISTOLEIRO 1 Ele tinha um trinta e oito.
PISTOLEIRO 2 Eu sei. O Magal tinha um trinta e oito. Uma caminhonete. Uma venda. Uma fazenda.
PISTOLEIRO 1 E o que mais?
PISTOLEIRO 2 Não sei.
PISTOLEIRO 1 Ele tinha um trinta e oito.
PISTOLEIRO 2 E daí?
PISTOLEIRO 1 Ele atirou na freira. Ele atirou na freira com o trinta e oito.
PISTOLEIRO 2 Mas a freira era comunista.
PISTOLEIRO 1 Ele matou a freira porque a freira era comunista?
PISTOLEIRO 2 Ele matou a freira porque deu vontade.
PISTOLEIRO 1 O Magal era doidão, entende?
PISTOLEIRO 2 Entendo não.
PISTOLEIRO 1 Ele pôs o revólver na testa da freira e atirou. O sangue jorrou e a freira caiu. Era certeiro.
PISTOLEIRO 2 Você viu o doido atirando?
PISTOLEIRO 1 Vi. O doido fez isso na véspera do Natal. Matou a freira com um revólver na véspera do Natal.
PISTOLEIRO 2 É uma coisa louca, não é? O maluco com um revólver na mão. O maluco encara o olho da freira comunista. A freira comunista olha firme o maluco. O maluco atira. O sangue jorra. A freira cai no chão.
PISTOLEIRO 1 O sangue da freira era vermelho como o sangue da gente.
PISTOLEIRO 2 O quê?
PISTOLEIRO 1 Como sangue de macaco, que também é vermelho.
PISTOLEIRO 2 Você já comeu carne de macaco?
PISTOLEIRO 1 Não. Mas os índios comem.
PISTOLEIRO 2 Deve ser bom.
PISTOLEIRO 1 Não sei.
PISTOLEIRO 2 Já imaginou um maluco mirando o revólver? Um maluco encarando, olhando firme o teu olho? Já imaginou um maluco atirando no meio da tua testa?
PISTOLEIRO 1 Não. Mas vi num sonho. Eu caía no chão depois que o maluco atirava. Eu caía morto no chão. O meu espírito saía do corpo. Meu espírito via tudo de cima como se voasse. (Pausa.) Quando tive esse sonho acordei atormentado e fui à venda do Magal tomar uma dose de 51. (Pausa.) O Magal era doidão.
PISTOLEIRO 2 Ele andava com um rosário no pescoço. Tinha o corpo fechado.
PISTOLEIRO 1 Mas não acreditava em porcaria nenhuma.
PISTOLEIRO 2 Em Satanás. O Magal acreditava no capiroto.
PISTOLEIRO 1 E você acredita em quem?
PISTOLEIRO 2 (Com algum deboche.) Na pombajira. Naquela puta da pombajira. Entende?
PISTOLEIRO 1 Entendo não.
PISTOLEIRO 2 Às vezes penso numas coisas.
PISTOLEIRO 1 No quê?
PISTOLEIRO 2 Na bala do revólver cortando a carne. No músculo danificado. Nos nervos e vasos sanguíneos se rompendo.
PISTOLEIRO 1 Um tiro?
PISTOLEIRO 2 Que tiro?
PISTOLEIRO 1 Um tiro de revólver. Um tiro na cabeça.
PISTOLEIRO 2 Tudo, antes e depois da massa cinzenta, será aniquilado: a pele, os nervos, os cabelos. (Sussurra.) Morte certa.
PISTOLEIRO 1 Você já levou um tiro?
PISTOLEIRO 2 Já. Já levei um tiro.
PISTOLEIRO 1 Onde? Onde você levou um tiro?
PISTOLEIRO 2 Na testa. No braço. Na perna. Na boca. No céu da boca. No cu. Já levei um tiro no cu.
PISTOLEIRO 1 E morreu?
PISTOLEIRO 2 Morri.
PISTOLEIRO 1 Quantas vezes?
PISTOLEIRO 2 Quantas vezes o quê?
PISTOLEIRO 1 Quantas vezes você morreu?
PISTOLEIRO 2 Todas as vezes que levei um tiro. Morri todas as vezes que levei um tiro.
PISTOLEIRO 1 E doeu?
PISTOLEIRO 2 Doeu o quê?
PISTOLEIRO 1 O tiro. O tiro doeu?
PISTOLEIRO 2 Não me lembro.
PISTOLEIRO 1 De nada?
PISTOLEIRO 2 De nada o quê?
PISTOLEIRO 1 Da dor? Você não se lembra da dor?
PISTOLEIRO 2 Não me lembro. Mas senti fome. (Sussurra.) Acho que senti fome.
PISTOLEIRO 1 E te deram algo pra comer?
PISTOLEIRO 2 Não lembro. Acho que me deram água.
PISTOLEIRO 1 Água?
PISTOLEIRO 2 (Sussurra.) Eu já estava morto quando me deram água.
PISTOLEIRO 1 Nenhum cigarro?
PISTOLEIRO 2 Sim. Deram um cigarro.
PISTOLEIRO 1 E você fumou?
PISTOLEIRO 2 Dei um trago.
PISTOLEIRO 1 Só um trago?
PISTOLEIRO 2 Já não tinha forças.
PISTOLEIRO 1 Você não se lembra de mais nada?
PISTOLEIRO 2 Tinha uma coisa.
PISTOLEIRO 1 Que coisa?
PISTOLEIRO 2 Era um troço.
PISTOLEIRO 1 Que troço?
PISTOLEIRO 2 Dava até vontade de chorar.
PISTOLEIRO 1 Por quê? Por que dava até vontade de chorar?
PISTOLEIRO 2 A música.
PISTOLEIRO 1 Que música?
PISTOLEIRO 2 A música que tocava lá.
PISTOLEIRO 1 Que música tocava lá?
PISTOLEIRO 2 Era triste.
PISTOLEIRO 1 E a freira?
PISTOLEIRO 2 Que freira?
PISTOLEIRO 1 A freira comunista.
PISTOLEIRO 2 Que tem a freira comunista?
PISTOLEIRO 1 Você viu a freira comunista?
PISTOLEIRO 2 Sim. Vi a freira comunista.
PISTOLEIRO 1 Onde?
PISTOLEIRO 2 Lá.
PISTOLEIRO 1 Lá onde?
PISTOLEIRO 2 Debaixo de uma árvore.
PISTOLEIRO 1 E você atirou?
PISTOLEIRO 2 O quê?
PISTOLEIRO 1 Você atirou na freira comunista?
PISTOLEIRO 2 É uma coisa louca, não é? A freira comunista está debaixo de uma árvore com uma Bíblia. Eu tenho um revólver na mão. A freira comunista encara o meu olho. A freira comunista me olha firme. Atiro. O sangue jorra. A freira cai no chão.
PISTOLEIRO 1 E o Magal? Você viu o Magal?
PISTOLEIRO 2 Que Magal?
PISTOLEIRO 1 Ele tinha uma caminhonete. Ele saía adoidado com a caminhonete pela estrada. Levantava poeira.
PISTOLEIRO 2 E daí?
PISTOLEIRO 1 Ele punha uma fita cassete no som da caminhonete. Ele punha a música bem alta. E saía pela estrada com a música bem alta.
PISTOLEIRO 2 Você ia junto?
PISTOLEIRO 1 Eu ouvia aquelas músicas e olhava firme a estrada. Parecia que não havia fim. Que a gente não ia chegar nunca no fim da estrada. Que aquela música ia tocar o tempo todo.
PISTOLEIRO 2 E o que houve com o Magal no fim das contas?
PISTOLEIRO 1 Ele capotou a caminhonete um dia. Ele levou um tiro de revólver.
PISTOLEIRO 2 E morreu?
PISTOLEIRO 1 O corpo se esbagaçou na estrada.
PISTOLEIRO 2 Em tempos.
PISTOLEIRO 1 Mas eu não consigo esquecer.
PISTOLEIRO 2 O quê? O que você não consegue esquecer?
PISTOLEIRO 1 Da música.
PISTOLEIRO 2 Que música?
PISTOLEIRO 1 Da música que o Magal escutava no som da caminhonete.
PISTOLEIRO 2 E que diacho de música o doido do Magal escutava na caminhonete?
PISTOLEIRO 1 Aquela…
PISTOLEIRO 2 Qual?

O Pistoleiro 1 canta a canção “India”, de José Asunción Flores, com letra do poeta Manuel Ortiz Guerrero.

EPÍLOGO
FOTOGRAFIA

Transamazônica. Km 3.000. Itaituba. Cena externa. Sol da metade da manhã. A fotografia de um funeral é projetada. Uma família pobre está diante de um caixão com flores. O narrador descreve a fotografia antiga.

NARRADOR A fotografia enquadra o apinhado de gente, uma família: destroços. Rostos furtados de si, atônitos. Ossos de gente à parte. Fios de vida entrelaçados. Posicionam-se num semicírculo para celebrar a fotografia fatídica, testemunho árido de dor. Os corpos cabisbaixos, reverentes, velam o corpo duma das irmãs, morta. O corpo da irmã, ainda menina, coberto de flores murchas. O corpo duma irmã, num caixão. Quase nada avistamos da paisagem. Nada sabemos sobre onde estão. Mas uma casa de madeira, ao fundo, talvez denuncie as posses apoucadas daquela gente. As paredes envelhecidas pela chuva guardam marcas de pregos enferrujados. Não avistamos o céu. O dia parece ensolarado, apesar da atmosfera embargada da foto. Não sabemos se é manhã ou tarde, que horas são. Talvez seja meio-dia. Talvez seja exatamente meio-dia sobre o chão de terra onde aqueles pés se firmam em sandálias. Talvez alguém ali se atreveu a fotografar o suplício. Talvez a família quisesse guardar para si aquela última lembrança da filha, da irmã, da tia. Talvez não se envergonhassem da morte. Era comum que aquela gente visse a vida se perder, de repente, aos poucos ou de uma vez só. Era comum que aquela gente fosse fotografada entre caixões. Era comum que aquela gente, vestida com camiseta pobre, sem cerimônia, se aglomerasse na carroceria dum caminhão e viajasse por quilômetros. Era comum que se acidentasse. Era comum que aquela gente morresse. (Pausa.) A menina coberta com flores murchas morreu numa estrada ao longe, a Transamazônica. Era minha tia. (Sussurra.) Nunca vi a minha tia.

A menina mais velha, cabelos curtos, está no meio da foto e afronta, semblante enrijecido, quem olha — talvez o fotógrafo. O sol esconde seus olhos, seus cílios e sobrancelhas. Mas é possível ver seus lábios cerrados. É possível sentir a sua boca seca. Das suas vestes vemos apenas a camiseta pobre, sem cerimônia. A mesma camiseta pobre, sem cerimônia, que os outros meninos usavam, por engano ou não. A menina mais velha continuará olhando quem está defronte pelos séculos sem fim, até que, num incidente indevido, acabe a fotografia que a captou para sempre naquela posição imóvel e incômoda de ser a única pessoa ali a encarar quem fotografa, o anjo caído que quis registrar a desgraça dos seus.

Ao seu lado está o menino mais novo, perdido no apinhado de gente, uma família: destroços. Decerto, não sabe o que faz ali, em riste, posicionado como se fosse ser fuzilado em seguida. Decerto, nem sabe o que é fuzilamento. Dele só avistamos a cabeça miúda e o dedo indicador entrando no nariz. Decerto ele queria coçá-lo, mas o flash da câmera o interrompeu, e ele ficou para sempre ali, com o dedo dentro do nariz.

Os outros dois meninos estão cada um em uma extremidade da fotografia. Do menino no canto direito da foto vemos as pernas magras, os pés quase descalços numa sandália, a bermuda curta e a camiseta pobre, sem cerimônia, como a da menina mais velha. Não vemos o seu rosto. Ele está virado. Impactado, olha para o centro da fotografia. Dos meninos, ele é o mais triste, o mais centrado. Os braços parecem pesar como pedras. Ele, ao contrário do menino mais novo, sabe o que ali acontece e se compadece, derruído.

Do menino no canto esquerdo da foto vemos as pernas magras, os pés quase descalços numa sandália, a bermuda curta e a camiseta pobre, sem cerimônia, como a da menina mais velha. Vemos o seu rosto, de perfil, e sua expressão de quem se admira do que ali sucede, mais como um curioso, mais como quem não pertence àquele acontecimento, alheio, absorto. Por isso, talvez pouse a mão sobre a virilha de menino e coce levemente o saco com a mão sobre a bermuda. E assim ficará para sempre: alheio, coçando levemente o saco com a mão sobre a bermuda.

Outros dois irmãos, quase adultos, aparecem contritos, com o corpo curvado, em reverência. Compõem um semicírculo. Uma reza dura e silenciosa. Delongada. Dum dos irmãos só avistamos a sombra, parte da cabeça cabeluda e os pés quase descalços numa sandália. O outro irmão veste uma camisa com mangas. Um homem já. Mas a bermuda curta denuncia o menino que ainda é. Ele se põe firme. Corajoso. Doído por dentro.

Outras duas irmãs, já adultas, aparecem também nas extremidades da foto. Elas guardam no rosto um coração arrasado. Os corpos se mantêm pesados como o restante do apinhado de gente, uma família: destroços. Uma das irmãs pousa levemente os braços sobre o ombro do menino do canto esquerdo da foto, mostrando intimidade. Talvez buscasse apoio ou, como ele, quisesse fugir dali.

No centro da foto, a mãe e o pai resguardam o que sobrou da família. Estão em pé como se estivessem prostrados. A mãe, braços à mostra, cabelos curtos, tem o olhar caído. O pai, barba por fazer, encalvecido, camisa desabotoada, parece se perder na tristeza mais daninha. Dele ficou a fotografia amargurada de sua gente.

Mas uma mulher, entre o centro e a extremidade esquerda da foto, rouba a cena. Dos irmãos adultos é a que nasceu primeiro. Tem a cabeleira grande. Cobre o corpo curvado com um vestido amarelo claro, pobre, sem cerimônia. Os pés estão quase descalços, numa sandália. O semblante sobrevém abatido e magro. Desnudado. Pesa-lhe a barriga. Ela está grávida. Essa mulher é a minha mãe. Ela se chama Iraxeru. (Sussurra.) Talvez seja eu o menino por nascer.

Cantarola.

BORGES, Rudinei. Oratório no deserto de sal. São Paulo, SP: Ed. do Autor, 2022.

A peça Transamazônica só pode ser encenada com autorização do autor. Contato: rudineiborges.contato@gmail.com

Foto: Paula Sampaio