Mil vezes no subterrâneo duma cidade derruída

minha cidade
é aquela onde satã
arma a tenda e descansa
onde os mortos

abandonam o túmulo
e vêm me felicitar
minha cidade
é aquela onde sou estrangeiro
sempre
minha cidade
nunca me conhece
nunca me diz:

segue aquela rua
dorme naquela esquina
minha cidade arde
cálida
nos meus pés
e passeia pela ventania,
espectro voraz do tempo
minha cidade é a tempestade

queria
mil vezes assentado no precipí-
cio
mil vezes contrito no deserto
queria
mil vezes ancorado nos rochedos
mil vezes dentro do vendaval no escuro adentro

um leopardo

no esteio das marés re-
voltas
com olhos acima dos olhos
em soslaio na agulha do céu sem estrelas
queria
um

instante

dos cães em guarda às margens
mil vezes no subterrâneo duma cidade derruída
mil vezes pólvora no disparo dos canhões
mil vezes verve e pássaro e verve
asas no alento das manhãs
mil vezes febre no ventre estéril da terra daninha
face mil vezes
caos mil vezes
lâmina mil vezes
queria
rasgos de artilharia entre
gravunhas de guerreia entre
ninhos de serpentes entre
rastros de zinco entre
primeiros passos no chão desarmado
escopo mil vezes
piolhos-do-corpo mil vezes
mármore mil vezes
queria
das serranias para cá
das nascentes para cá
das sendas para cá

o cicio da noite

queria
mil vezes átrio
queria cobrir-me com véu
mantos lilases
vestir-me de mísseis e projéteis queria
semear na terra a cratera a ruína a vertigem o pó de fuligem
maquinaria
mas não sei principiar a imensidão
por isso volto aqui
em estilhas de dor que guardei numa muralha
estilhas presas num cântaro em tempestade
por isso volto aqui
nu
da cavalaria em pé às margens
do ciclone em pé às margens
do arranha-céu em pé às margens
do para-raios em pé às margens
do alúvio em pé às margens
do armamento em pé às margens
da arca em pé às margens
nu
sem hábito batina capuz albornoz
só a febre nos braços
só a febre nas mãos
só a febre nos olhos
só a febre na boca
só a febre na têmpora
só a febre nos ombros
só a febre nos pés
nu
feito o diabo nu
que ancorou no meu ventre
nu
feito o diabo nu
que a nado atravessa o mar
até as malvinas
nu
com o sexo posto à mesa
o sexo servido no jantar
e as gentes da família
mastigam o sexo roxo elástico
as gentes da família
engolem o sexo roxo elástico
as gentes da família
vomitam o sexo roxo elástico
por isso volto aqui
para dizer dissabores em espada
para flertar com o horizonte estático
para colher das plantações de espinho
o mel da terra roto e indomável
para arrastar o corpo em pedras com pontas amoladas
e enxugar lágrimas nos ventiladores encarniçados
para olhar frestas entre janelas fechadas
e acordar cedo
como o dia cedo
quando vem ao mundo o anunciado
quando choraminga o anunciado
quando adormece o anunciado
quando caminha o anunciado
quando peleja o anunciado
quando morre o anunciado
por isso
volto
aqui

Rudinei Borges. O lançador de granadas. São Paulo, SP: Selo Rosalva, 2022.

Foto | Bill Brandt

RUDINEI BORGES nasceu no Norte do Brasil, em Itaituba, sudoeste do Pará, ao rés do chão da floresta amazônica, às margens do rio Tapajós. Poeta, dramaturgo e ficcionista, reuniu escritos de mais de duas décadas dedicadas à literatura e ao teatro nos livros O grão e a palha na eira (poemas), Oratório no deserto de sal (dramaturgia) e Campo do Oleiro (prosa), publicados pelo Selo Rosalva e também traduzidos para a língua espanhola.