revolver

— “Mãe, que é que é o mar, Mãe?” Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um mundo d’água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. —“Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?”
(João Guimarães Rosa, Campo geral)

Ventania. Só estirão. Kizúa está sentado com uma pequena arca. Sozinho, como à espera de alguém, olha as distâncias. Não se contenta em estar só. Não muito longe, avista-se na aridez da paisagem a última árvore, um baobá. Kizúa cantarola. Rabisca o chão com um graveto.

KIZÚA Só estirão. Mais nada. Caminho vazio dum lado, doutro: refega. Quase como guardar vento na palma da mão. Não deixar vento escapar entre os dedos. Guardar vento n’unhas. Ao longe, só vento, makita. Silêncio. Cantiga do vazio que assusta as tardes. Nada de olhar no vento do céu, no vento do chão, nada de olhar corrupião, caboclinho, inhambu-chintã, ananaí, paturi-preta, uru, garça-vaqueira, curicaca, batuiruçu, vira-pedras, gavião-caramujeiro. Nada de olhar coisa alguma. Só estirão. (Como se assuntasse algo ao longe.) Batida de pedra. Pedra de amolar. Vem gente. (Convicto e aliviado.) Vem gente, vem gente. (Decepcionado.) Não sobrou gente nenhuma nestes tempos de arruinar. (Olha o chão.) Só sombra. Mas sombra não fala. É muda. Não diz trava-língua: caroço, alvoroço, osso, oco — vazio. Sombra não diz nada não. Credo. Mas nestas andarias é companheira única. De tempos. E faz tantos. (Enfadado.) Só sede. Da boca. Da febre. Do útero. Não sabe? Pois digo: a sede é de dentro. De dentro da gente. A sede é de encontrar gente para ter umas conversações, uns ditames, uns pareceres. De que adianta andar tanto sem ter para quem contar? Hora dessas o copo enche, tem que derramar a sapiência. Andarias no mundéu. (Se acocora. Põe a mão no ouvido.) Agora sim. Vem andejo daquelas bandas. (Confunde-se.) É trote de cavalo. Deve ser um vaqueiro que restou no mundo. Mas que era mesmo cavalo? Não lembro. Devia de ser mariposa. Mas que era mesmo mariposa? Não lembro. (Pausa.) Só da cantoria do pai no Dia dos Finados. Só choro. Da reza. Lembro. Às vezes, esqueço. (Como se conversasse com alguém.) Não era? Mas devia ser assim. O mundo tinha mais gente. Não tinha? (Forte ventania. Canta como se quisesse encantar a ventania. Dança com um cajado na mão. Diz palavras soltas, uma reza com nomes em kimbundu, língua banta falada em Angola.) Akulo. Quizomba. Zala. Uafa. Thoji. Tata-weno. Tshihunda. Murimbo. Dibuku. Mutu. Ekonzo. Milongo. Caquece. Jinzebu. Dundo. Gungungo. Kamanga. Diunda. Baná. Izô. Boté. Zalata. Benguê. Dibilu. Ekanda. Iamuenhu. Makita. Makita. Makita.

Curva-se. Acocora-se. Cai estirado no chão.
Silêncio. Breve claridão. Breu.
Ao longe, avista-se Izô, entoando uma cantiga, caminhando em passos duma dança, com um estandarte nas mãos. Um brincante talvez. Um rezador de andarias. Andejo dos estirões. Leva consigo um alforje, um pequeno cântaro com água e um lenço. Quando vê Kizúa, Izô se acocora, compadecido do andejo que encontra estirado no chão. Leva o corpo desfalecido de Kizúa ao ensombro da árvore grande. Izô molha lentamente o rosto do outro andejo. Entoa uma cantiga. Kizúa acorda. Os dois começam a narrar, à volta da árvore, como Izô foi morar nos olhos de Kizúa.

IZÔ (Apresenta o outro andejo.) Primeiro era Kizúa, dia. Ao longe, Kizúa caído no estirão de terra batida. Kizúa sozinho na paragem, à volta da árvore grande, bonita. Pobre Kizúa, caído ali à espera de makita, o vento. Makita veio, forte que era, e derrubou Kizúa. Nesta hora, ao narrar, Izô riu. Kizúa era erê, menino em tudo, só podia ser. Andejo dos estirões. Valente. Medroso um pouco. Mas ao cair, pobre Kizúa, ele esqueceu tudo. Ou já tinha esquecido tudo antes. Não sabia nome das coisas. Significado das rezas. Não lembrava rosto de gente do tempo antigo.
KIZÚA (Apresenta o outro andejo.) Segundo era Izô, alento do fogo, aquele que veio depois, errante nos estirões. Tinha sapiência na poeira e gole d’água na moringa. E ervas no alforje. Era rezador de andarias. Risonho. Afoito, às vezes. Veio da refega. Foi makita, vento, que o enviou, decerto. Ou não. Nunca se sabe. Izô era erê, menino em tudo, só podia ser. Andejo dos estirões. Valente. Medroso um pouco. Nesta hora, ao narrar, Kizúa riu. Mas Izô sabia enxergar. Via tudo de um tanto sem igual. Izô viu Kizúa caído no estirão perto da árvore grande. Lavou rosto de Kizúa com gotas d’água. Mas de tanto andar, sol a sol, Izô esqueceu tudo. Ou já tinha esquecido tudo antes. Não sabia nome das coisas. Significado das rezas. Não lembrava rosto de gente do tempo antigo.
IZÔ Foi assim, sem saber, esquecidos um tanto, sozinhos no estirão, que Izô e Kizúa se encontraram, e riram, riram, riram. Dia e noite, Izô e Kizúa riam de tudo porque não lembravam de nada. E nem sabiam que não lembravam. (Espanto.) Izô olhou firme nos olhos de Kizúa e se espantou, porque ao chegar perto, bem perto, viu um pedaço de si dentro dos olhos de Kizúa. “Como podia?”, Kizúa perguntou. “Como ele podia, ao mesmo tempo, morar fora e dentro do olho de Kizúa?” Izô se zangou porque Kizúa não queria tirar Izô de dentro do olho.
KIZÚA “Mas olho é meu”, disse Kizúa. “Olho meu deixa morar, dentro de si, o que quiser.” Mas como não havia mais nada no mundo, só estirão, até aquele instante em que Izô olhou, o olho de Kizúa só tinha, dentro de si, o estirão. “Pobre o olho onde não moram muitas coisas. Sorte que agora tem Izô para morar dentro do olho de Kizúa.”
IZÔ “Mas Izô não mora em lugar nenhum. Izô não tem casa. Não tem mãe. Não tem pai. Nem irmãos. Izô não tem dono. Dono de Izô é o descampado, o estirão, a distância. Descampado, estirão e distância residem em Izô, estão dentro de Izô, fazem parte de Izô. Izô vive por aí, em andaria. Izô vive por aí no estirão. Izô só anda, anda. Depois para. Descansa. Izô dorme. Procura água. E Izô volta a andar. Izô não quer morar dentro de olho, porque olho é prisão de Izô.”
KIZÚA “Mas e se Izô partisse pelos campos e depois voltasse? Se Izô, às vezes, voltasse aos olhos de Kizúa? Assim, Kizúa não estaria sozinho no mundo. Kizúa teria a quem chamar de amigo, mesmo que olho de Kizúa fosse casa de Izô só em parte.”
IZÔ “Mas que é amigo?”, perguntou Izô. “Deve ser bicho que avoa.”
KIZÚA “Bicho que avoa?”, perguntou consigo Kizúa. (Com contentamento.) “Bicho que avoa que nem mariposa?”
IZÔ “E mariposa avoa?”, perguntou Izô, surpreendido.
KIZÚA “Claro que avoa”, respondeu Kizúa. “Mariposa sempre avoa.”
IZÔ “Então amigo é igual mariposa, bicho que avoa”, disse Izô, a olhar distâncias. “Então Izô é amigo de Kizúa.”

Os andejos narram o começo dos tempos aos pés da árvore grande, baobá.

IZÔ Foi assim que, acocorado no estirão, Izô começou a dizer: “Bumba estava sozinho nas águas escuras do nada. Desejava ter companhia. Tinha ânsias de ajuntamento. Era triste em demasia viver sozinho, pensava Bumba. Então Bumba pensou que era preciso mais alguém. Sem luz, porém, Bumba não podia campear à procura de alguém. Certo dia, Bumba sentiu dor forte na barriga e vomitou o Sol. De repente, havia luz em toda parte”.
KIZÚA “No princípio de tudo…”, sussurrou Kizúa. “No princípio de tudo havia só o orum, espaço infinito. E lá, no orum, vivia Olorum. E dos olhos de Olorum nasceu imensa massa d’água, lágrima donde nasceu Oxalá, único capaz de dar vida. Olorum disse para Oxalá partir, feito andejo na poeira, e criar aiyê, mundo. E Oxalá partiu, feito andejo na poeira. (Entristecido.) Mas Oxalá não se aprumou no ofício de criar mundo.”
IZÔ Izô se levantou devagar. Assentou no estirão só pés. Ficou de pé. Olhou firme os olhos de Kizúa e continuou a dizer. “Bumba vomitou, depois do Sol, estrelas e Lua. Assim, noite também tinha luzes que brilhavam ao longe na cumeeira do céu. Ele também criou relâmpago e, finalmente, vomitou as pessoas. Bumba vomitou nove criaturas diferentes, entre elas tartaruga, leopardo, águia, besouro e crocodilo. (Sussurra como se lembrasse de repente.) E mariposa.”
KIZÚA Kizúa riu quando Izô disse que Bumba vomitou mariposa. E continuou a dizer. “Quem criou mundo foi Oduduwa, parte feminina de Oxalá. Oxalá ficou triste, sentado numa pedra no meio do estirão. Caíam lágrimas dos olhos de Oxalá, porque Oxalá não se aprumou no ofício de criar mundo.”
IZÔ “Lágrima? Que é lágrima?”, perguntou Izô.
KIZÚA “Lágrima é rio de água salgada que brota nos olhos quando olhos estão tristes”, disse Kizúa.
IZÔ (Surpreendido.) “Então, lágrima é mar?”, perguntou Izô.
KIZÚA Kizúa riu, porque não sabia mais como dizer a Izô o que era lágrima. (Como quem de repente encontra a resposta.) “Lágrima, Izô, era rio que nascia da dor de Oxalá. Foi então que, para consolar Oxalá, Olorum lhe deu outro ofício: de inventar seres que habitariam mundo. Assim Oxalá usou água que nascia de seus olhos e lama para criar peixes, árvores, pessoas e mariposas.”
IZÔ Izô riu. E Izô se tomou de contentamento, pois agora sabia de onde vieram as coisas e se contentava de saber de tudo um pouco: do vômito de Bumba e das lágrimas de Oxalá nasceram as pessoas.
KIZÚA Kizúa guardava em tudo semelhanças com Izô. Kizúa respirava forte como respirava Izô.
IZÔ Izô guardava em tudo semelhanças com Kizúa. Izô tinha lábios e dentes. E ria.
KIZÚA Kizúa guardava em tudo semelhanças com Izô. Kizúa tinha mãos e dedos. E pedaços de vento entre os dedos. Kizúa guardava cisco e terra nas unhas.
IZÔ Izô tinha unhas.
KIZÚA Kizúa tinha braços.
IZÔ Izô tinha ombros.
KIZÚA Kizúa tinha costas.
IZÔ Izô tinha barriga.
KIZÚA Kizúa tinha umbigo.
IZÔ Mas Izô era mais argucioso. Esperto em tudo. Izô andava pelos quatro cantos do mundéu. Enquanto Kizúa… Ah, Kizúa ficava sentado em pedra sob árvore seca.
KIZÚA Mas que graça tem andar pelos quatros cantos do mundéu se não há mais nada que enxergar? Só claridão de sol. Só azulão de céu. Só vermelhidão de estrada. É como se tempo fosse só dia, horas desarrimadas.

Kizúa guarda nas mãos uma pequena arca.

IZÔ Assunta. (Olha curioso para a arca antiga.) Que é isto que Kizúa tanto guarda?
KIZÚA (Com a arca nas mãos.) É coisa.
IZÔ Mas que é coisa? Tralha? Amontoado?
KIZÚA É nada não. É que Kizúa guarda por guardar. Kizúa acha bonito.
IZÔ Bonito? Que é bonito?
KIZÚA Bonito é coisa que a gente diz que é bonito e pronto. A gente não consegue explicar.
IZÔ Izô não guarda nada que é bonito. Triste Izô que não guarda coisas bonitas.
KIZÚA (Entrega a arca para Izô.) Se Izô não guarda nada que é bonito, agora Izô tem coisa bonita a guardar.

Izô se senta e brinca com a arca antiga.

IZÔ (Desapercebido.) Deve de ser coisa imprestável. Não tem mesmo nenhuma serventia. (Pausa.) Kizúa, por que é que se chora?
KIZÚA Porque nem tudo se tem. Às vezes, se perde o que nunca se deveria perder. Às vezes se esquece e não resta mais nada, nem lembrança. Só pó. Poeira. Vazio talvez. Olhe. Só restou estiramento e raios. Mais nada. E vento, makita. (Lembra-se.) E árvore, baobá. (Olha a árvore.) Restou árvore, baobá.
IZÔ (Olha a árvore.) Que é árvore que não tem frutos? Árvore seca?
KIZÚA É árvore mesmo sem partos. (Aproxima-se da árvore.) Árvore é árvore mesmo infecunda. Olhe bem de perto. Há frutos. Múkua. E são muitos. Raiz se perde na terra de tão antiga. Galhos frondosos vão até alto do vento. Caule se expande dentro d’olhos. Foi a última árvore que restou dentro do estirão.
IZÔ Kizúa já ficou triste?
KIZÚA No tempo que Kizúa andava sozinho nessas paragens, Kizúa era triste. Kizúa não tinha ninguém. (Pausa.) E Izô já ficou triste?
IZÔ Agora, Izô está triste.
KIZÚA Por que Izô está triste?
IZÔ Porque Izô olha árvore grande e principia a lembrar.
KIZÚA Lembrar o quê?
IZÔ Tanta gente que partiu. (Pausa.) Izô nunca mais viu. Izô já esteve à volta de sua gente. À volta de árvore grande a ouvir histórias do tempo antigo. Agora, Izô olha estirões.
KIZÚA Estirões têm sede.
IZÔ Sede de quê?
KIZÚA De volver ao começo. De garatujar passos para dimatekenu, princípio.
IZÔ Princípio? Que é princípio?
KIZÚA (Olhando a árvore.) Árvore grande. Árvore grande é princípio.
IZÔ Alembro. (Esboça um riso.) Donde moravam mariposas.
KIZÚA Donde se sentava em roda, à volta…
IZÔ À volta da árvore grande, baobá. Donde se ouvia cantiga. Donde se dançava ciranda. Donde se armava a peleja dos repentes. Donde se anunciava reza, benzimento. Donde semente do fruto, múkua, caía na terra e na terra germinava lavoura. Donde se ouvia tambores: Santana, Santaninha, Chama e Zâmbi. Donde se vai, bonito que vai, o Chico Rei, o candombe, a Missa Conga, as irmandades do Rosário. Lá longe. (Izô põe o ouvido no chão. Olha as pessoas à volta e pergunta.) Assunta? Assunta, Kizúa? Lá vai procissão para coroação de Nossa Senhora do Rosário. Congada. Maracatu. (Pausa.) Corpo fechado para não entrar nenhum mal: faca, veneno de cobra, mau-olhado, arma de fogo. Fechar o corpo, oração forte. (Pausa.) Velas acesas na casa. Contos e causos. Vento que entrava na janela. Mãe servia o jantar. Meninos à mesa. Reza antes de deitar: “Deus te livre de todo o mal”. Boldo. Fumo de rolo. Comigo-ninguém-pode. Festa de Padroeira. Brogodó. Pau de sebo. Lua cheia. Angico. Vajucá. Cotocó. Terra vermelha. Isto é tempo, Kizúa. Tempo antigo. (Com o corpo ao rés do chão.) Tempo que se perdeu nalgum lugar que agora é tarde.
KIZÚA (Sussurra.) Nunca é tarde, Izô. Nunca é tarde quando estamos à volta da árvore grande, baobá, que é recomeço.
IZÔ Venho de longe, sabe? Das partes tantas dos estirões. Andei por todas estas paragens. (Pausa.) Olha, Kizúa… É poeira que tenho nos olhos. Com tempo poeira deixou pés, tomou conta do resto do corpo e veio dormir nos olhos. (Pausa.) Procurei tanto. E agora — não me envaideço — continuo a procurar.
KIZÚA Procurar o quê, Izô? (Corre ao redor da árvore. Corre muito.) É tempo de arruinar faz anos…
IZÔ Procurar os nossos, os outros. Olha, eram tantos rostos. Dentro de cada rosto havia um esboço distinto de riso e dor. (Olha o estirão.) Já se perdeu tanto.
KIZÚA (Com tristeza.) Aqui mesmo. Que era aqui? Era aldeia. Gente vivia ao redor da árvore grande. Mas tudo findou duma vez, num dia… Só vermelhidão. (Cai no chão.) Era fogo. Restou nada.
IZÔ Mas estamos aqui. Nós restamos. Sei. Veja. (Toca o rosto de Kizúa.) Este é Kizúa. Este é o seu rosto.
KIZÚA Esse sou eu? Agora, agora é maior o meu rosto. Antes só via cisco do que eu era.
IZÔ Mas quem é Kizúa que não sei?
KIZÚA Eu? Sou Kizúa. Sabe? Kizúa… Aquele que Izô encontrou caído. Tenho um rosto. Mas rosto é só parte, sabe? Rosto é coisa tão miúda. A terra… A terra é imensa. Minha mãe… Ah, ela sempre dizia: “Vai, filho. Segue, que os estirões são imensos”. Mas fiquei aqui. Só vento. Sou dia. Quase sempre mesmo… Começa de manhãzinha. Sol nasce nalgum lugar. Sol raia. Meio-dia. Tarde. Noite. Acaba. Começa. Já não sei ao certo. Quem é Kizúa? Nem sempre sei. E Izô, quem é Izô?
IZÔ Sou erê em tudo ou me invento menino porque, na verdade… Sabe? Na verdade, não tenho aonde ir. Sigo rumos, qualquer rumo. E tenho entristecimento de seguir sozinho. Às vezes paro, olho caminho e esmoreço. Oh, não sei… Tem dias que não creio em nada. Mas sigo, insistente que sou, sigo. De verdade: Izô é pássaro. Izô voa com pés no chão, mas Izô voa, mesmo sem asas… Que tempo não acaba.
KIZÚA Tempo não acaba. (Olha o estirão.) Que dia, que dia é hoje?
IZÔ Hoje é só começo.

Kizúa olha o estirão ao longe e decide partir.

KIZÚA (Olhando Izô.) Tenho que ir. É hora de partir. (Assusta-se.) Não me lembro. Que é partir?
IZÔ (Surpreende-se. Acha graça da pergunta de Kizúa.) Já não sei… Partir é ir-se, pôr-se em andaria, arremessar pés. Seguir em andança por estirões.
KIZÚA Às vezes, tenho vontade de sentar e ficar para sempre debaixo da árvore grande. Mas quero, acho que quero… Quero partir.
IZÔ Mas aqui, foi aqui que cheguei, só aqui encontrei amigo, aqui é bom. Aqui tem sombra. Aqui tem árvore. Aqui tem lembrança do tempo antigo. (Pausa.) Não. Não posso. Não posso ir.
KIZÚA (Zanga-se.) Como não? É tempo de rumar pra outras paragens. Ir adiante. Izô é amigo de Kizúa. Izô tem que ir. Vamos?
IZÔ (Com algum desespero.) Mas não há nada além de aqui. Tudo é deserto. Seco. Sem gentes. Sem ciranda.
KIZÚA Não. Não é. Depois do deserto há mar. Há campo grande de baobás nalgum canto. (Pausa.) Como alguém pode saber que não há nada além de aqui? (Pausa.) Adeus, meu amigo. Não posso continuar aqui. Meus olhos já não me deixam olhar do mesmo jeito.
IZÔ Espera. Toda vida me fiz andejo, sempre em andaria. Agora, agora encontrei um canto onde posso deitar a cabeça. Esperar um tanto. Já andei tanto que não tenho mais forças. Tenho anseios.
KIZÚA Anseios de quê?
IZÔ De acocorar corpo na terra, pés na terra. Chegou hora de olhar cio do tempo. Olhar tempo, alongar horas. (Com tristeza.) Houve tempo de guerra tanta. Era sofrimento tanto em toda parte. Não. Já não posso mais.
KIZÚA Levaram mães e meninos. Eu lembro.
IZÔ Vi com estes olhos que um dia serão inteiros da terra. Estes olhos tomados da dor dos tempos.
KIZÚA Mas já esperei tanto que não tenho forças de ficar parado à sombra, sempre à sombra.
IZÔ Fica.
KIZÚA Tenho que seguir mundéu afora, olhar distâncias.
IZÔ Então, toma… (Oferece uma semente.) Leva múkua contigo, semente de baobá, árvore grande.
KIZÚA Mas para quê? Para que levar sementes?
IZÔ Para plantar. Quem sabe a semente se enamora da terra, e da terra outras árvores, grandes como esta (olha a árvore), hão de nascer.
KIZÚA É um tanto de mim que fica aqui — feito vento que dorme. Não posso. Não posso levar mais nada a não ser aquilo que descobri guardado… Aquilo que era tarde, dentro.
IZÔ (Mostra um punhado de sementes nas mãos.) Leve um tanto. Leve consigo. E siga. Siga, meu amigo. Só vai ficar a saudade de quem me fez olhar mais um tanto do que é bonito.
KIZÚA Não tem sentido. Árvore vai crescer e criar sombra. Não haverá quem faça ciranda, quem conte histórias. Árvore é triste sem gente em volta.
IZÔ (Joga pedrinhas no chão, olha o oráculo.) É só seguir. Siga. Siga, meu amigo. E lembre-se desse andejo que é parte… (Com riso dentro do rosto.) Há gente. Basta andar um tanto. (Põe ouvido na terra.) Assunta, é ciranda.
KIZÚA Vem comigo.
IZÔ Posso não.
KIZÚA (Segura os pés de Izô e o levanta.) É só segurar o pé no chão. Levantar. Mover o pé e seguir. Aí é só andança. Vambora?
IZÔ (Risca o chão. Escreve nome de gente antiga.) Olha, Kizúa. Tão bonito nome: (diz devagar) Iori. Soube disto faz tempos. Iori, meu amigo, Iori é nome de minha mãe. Ela está longe — talvez. Ela está adiante: no estirão — eu sei. (Com lágrimas nos olhos.) Faz tempos, tempos que não vejo minha mãe. Colo, aconchego de minha mãe. Sabe? Mãe é gente tão formosa. Ela andava, andava tanto… Tenho tantas saudades, Kizúa. Tantas saudades de tudo que foi… Clarão do vazio já não quero. Ficar parado já não quero. Ventre. Ventre é anseio meu. (Pausa.) Eu vou, meu amigo. Quem sabe encontro. De repente. Mãe minha e mais gente. Gente do tempo antigo. Adiante. Sempre adiante. Eu sigo. (Com alegria.) Vem gente.
KIZÚA É mesmo?
IZÔ Vem gente.
KIZÚA (Sussurra.) É makita.
IZÔ (Em brados.) É mariposa.
KIZÚA Mas que é mesmo mariposa?

Os andejos riem, olham a árvore grande, baobá, e seguem pelo estirão.

BORGES, Rudinei. Oratório no deserto de sal. São Paulo, SP: Ed. do Autor, 2022.

A peça Revolver só pode ser encenada com autorização do autor. Contato: rudineiborges.contato@gmail.com

Foto: Paula Sampaio