Sede dos poços | poemas

Recreio de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

um trem.
cântaros na estrada.
— tenho jacintos na mão.
segue na vereda.
olha quem está defronte.
— os poços têm sede.

ontem dormimos no mar de dentro.

Cerâmica

sinto falta de mim.
quero voltar outra vez
para vê-lo mais de perto.
eu nem sempre sou eu.
às vezes sou o barro
e o vento vem me moldar.

Trapézio

corpo inundado.
mãos.
olhos.
campo inundado.
chama ao longe.
— mãezinha.
sussurra.
— agora e sempre, amém.
tenta se equilibrar.

Outeiro

não vejo mares e alquimistas.
só raios duma cantiga lá fora.
ando em círculos aqui dentro.
durmo com sede de ti.
do que não foi.
grão.

Pilão Arcado

ir ao cais mais um tanto.
ir ao longe numa locomotiva,
cercania adentro: ventre.

Firmamento

terra firme.
nudez maior que o agora.
eterno.
o vale me disse:
a aurora sopra o vento.
é longe a tarde.
asas vão voar.
vaga-lume.

Oco

só restou
— eu sei — mesmo à revelia, em queixas,
(diz o menino assonorentado)
só restou a ventania.
a ventania me põe de pé.

Vigília

a rua está vazia.
nua de zinco e cobre.
a rua está molhada
como quem chorou e acordou.
como quem nunca dormiu.
como quem viu partir
barcos e mariposas e marimbondos.
a rua está com sono.

Desvão

eu, que não aconteço,
ofereço pétalas ao vento.
intento amar as horas.
a noite à parte.
afora, no acometimento das marés.
ao rés do esquecimento da tarde.
a face alada do tempo.
a vida, ferro do começo.

Pervaga

quando a manhã vai embora,
quando a manhã cai no mundo
os meus dias dormem,
as marés submergem.
quando a manhã volta,
com os cântaros cheios d’água,
meus olhos fulgem.
vejo o sol se esparramar retirado
feito âncora.

Trem

quero viver
entregue ao vento sem desatino.
com o ardor das paixões.
o labor dos maquinistas.
o canto dos trilhos e dos vagões.
ao rés da relva franzina e forte.
amante e bravo como os heróis.
sem-medo-da-morte.

Arriamento

aos pedaços,
a manhã parte de mim
entre bêbados cambaleantes.
ali, onde estou só.
ali, onde o meu coração bate as botas,
a manhã dorme e acorda sem dó de si.
sem dó do mundo.

Bonfim do Amianto

Para Françoise Gomes

dormi nos poções fundos da alma.
não há chegança — creio.
guardei as vestes da chuva num varal de vento:
espelho d’água.
indumentárias de luz, voal invisível.
fechei o olho e a mão.
voei com o sol dentro da pupila.
vi a tarde. a têmpora.
constelações no alto dum veleiro.
e segui mundo afora com agulhas e novelos
remendando as asas partidas dos passarinhos.

Alvacento

quando os primeiros raios de sol
adentram o alpendre,
quando os primeiros raios de sol
vão e vêm entre os dedos,
creio na andorinha-pequena-de-casa,
creio no cais alvacento
deitado nos olhos da ventania.

Ermos

que é uma porta aberta,
uma rosa aberta,
o céu fechado?
que há quando os navios ancoram?
quando os trens partem?
quando as mães chegam de viagem?
quando enchem de banzeiro as mãos do menino?
quando o rio banha o cais?
que há com a gente quando a gente dorme
em qualquer canto da casa?
não há.

aretê.

Estame

a pele que me veste
é um besouro de cal,
anjo puído na noite alta do sono.

Matilha

os meus demônios passeiam pela casa à noite
e pela casa à noite roubam o que é amargo,
abrem cântaros de barro e comem sal.

Feixes

há noites inúteis, voz miúda de deus na sacada.
noites ardidas de fome, sem trigo e fermento.
cães lambem o hálito pobre e falível.
feixes de luz se acocoram na calçada molhada.
os alcatrazes voam nos olhos das cicatrizes.
o breu desalinha o firmamento.
há sede nos quatro cantos do mundo.

Relampejo

a poesia é meu enigma.
todo querer não-querer.
todo subir-descer.
toda luz-escuridão.

raios d’alzira na cacimba.
luzeiros d’aurora na vicinal.
olhos d’eva na capelinha.
pés miúdos no estirão.
pés miúdos no estirão.
pés miúdos no estirão.

Butu

o poema foi embora mundo adentro,
mas partiu corações.
deixou viúvas virgens,
assombradas e tristes,
dizendo adeus das janelas.
onze filhos o poema deixou.
um baú velho, dois cachimbos, um espinheiro.
e um pedaço de chão sem ervas daninhas
— o desarrimo.

Espera da poesia

todos dormem.
resta um silêncio profundo.
só o velho moinho de vento mata o sono.
espero a voz tardia entre almaços
e livros calados na cumeeira.
nosso encontro será meia-noite e meia.

a poesia não veio.

Alfarrábios

meus livros.
morrerei e eles estarão lá, órfãos de mim, sem herança.
nunca mais nos veremos — irmãos que éramos.
levarão silenciosos o meu corpo em partes pelo cais do mundo.
mas irei com eles, por aí, grafado e nu,
no bolor das páginas.

Iracunda

Para Ênio José da Costa Brito

guardei
vozeios entre colinas.
outras mantilhas rendadas.
lá atrás,
diante do espelho d’água,
os meninos amparam as distâncias na hora da chuva.
uns silenciam.
outros acordam.
outros vão embora mais uma vez.
guardei travessias infindas.
ipês-roxos.
pastagens a perder de vista.
o mesmo inventário de ontem.
a mesma reza de quando fui à casa da bisa.
os mesmos canteiros
como se voltássemos ao começo sempre.
como se a árvore lá fora
fosse um regresso eternal a mim mesmo.
como se dormissem muralhas nos meus olhos de vidro,
mas agora avistassem o rebanho no campo rupestre.
não recuso o que vejo.
não recuso os meus pés e eles andam.
não recuso o acalanto.
não esmoreço.
acarinho a terra encarnada.
a chuva e as tuas orações numa romaria.
não tenho receios.
só almaços em branco.
rumores, regaços.
o que vem antes da lonjura desconheço.
ao que vem depois olho torto.
amparo horizontes sem ribanceiras,
a vazante sem âncoras.
fiz-me em pedaços.
juntei os cacos, a febre e a fúria.
fiz da refega uma plantação de besouros.
guardei a artilharia em aldeias sem nome, a fome feraz.
cri no barro.
na água fria das cacimbas
nas vicinais esquecidas.
na mesa posta sem arames.
no oratório e nas ladainhas.
cri na brasa e no luzimento.
nas embarcações.
no rosto de eva.
na desvalia do tempo e na sede.
no resguardo da capelinha de nossa senhora menina.
cri no estirão abatido.
nas costas que levam gravetos.
cri nos meus irmãos.
na minha gente iracunda.
tudo é lembrança.

Rudinei Borges. Oração ao pequeno sol. São Paulo, SP: Selo Rosalva, 2022.